varal junino

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De festas juninas e engodos
Helcio Kovaleski*

“O sôr e a siá me dêem licença, pruquê eu tenho que dá uma sastifa procêis. Ue”i-me! Se eu tivé ca”s vevuia doendo, num vô. Mais se não, vô pagá só umas tusta i entro na furrupa. Tô meio reiúno, mesmo. Mais, se passá por mim um trelente, sô capaiz de trocê pra que dê um tropicão, só pra ele não me atrapaiá no meu intento. Lazarento! Só que óchque não pode tomá geribita. Mió. Assim, dá pra aproveitá mais a festança. Ué, vancê num sabe qui é qui eu tô falano? Ara, há de, mesmo! Puis num é das festa junina? Só preciso tomá um fôrgo. Óchque vô tirá uma paia. Tiavorta. Inté”.
Sou caipira. Assumo e me orgulho disso. Fui e ainda estou sendo moldado pela caipirice, essa matéria-prima atávica que é uma espécie de mito fundador da alma brasileira. Sou caipira porque absolutamente todos os brasileiros somos caipiras.
Ah, você não se acha caipira? Então, tente araruama, babaquara, babeco, baiano, baiquara, beira-corgo, beiradeiro, biriba ou biriva, botocudo, brocoió, bruaqueiro, caapora, caboclo, caburé, cafumango, caiçara, cambembe, camisão, canguaí, canguçu, capa-bode, capiau, capicongo, capuava, capurreiro, cariazal, casaca, casacudo, casca-grossa, catatuá, catimbó, catrumano, chapadeiro, curau, curumba, groteiro, guasca, jeca, macaqueiro, mambira, mandi ou mandim, mandioqueiro, mano-juca, maratimba, mateiro, matuto, mixanga, mixuango ou muxuango, mocorongo, moqueta, mucufu, pé-duro, pé-no-chão, pioca, piraguara, piraquara, queijeiro, restingueiro, roceiro, saquarema, sertanejo, sitiano, tabaréu, tapiocano, urumbeba ou urumbeva. (Não se assuste. Está tudo no Aurélio).
Nem tente. Não há como escapar, como negar. E renegar, além de ser uma absoluta estultice, vai contra a própria essência brasileira. O brasileiro é brasileiro porque é caipira, ponto.
Isso posto, vamos ao assunto principal: as festas juninas. Você, distinto e presumido cidadão “urbano”, colocaria um remendo na roupa para ir a um baile de formatura? Usaria um chapéu desengonçado? Iria nessa festa com um dente pintado de carvão, simulando uma ausência de pivô e falando “fofo” só para se achar engraçado? Iria com três pintinhas em cada face, o rosto transbordando de blushes e sombras e a boca cheia de batom? Nessa festa, você iria “tentar” imitar uma fala caipira, ou se comportaria “conforme a etiqueta”? Não iria, não é? Então me explique, distinto e ilustre “citadino”, por que numa festa junina todas essas presepadas descritas acima têm de acontecer religiosamente?
Caipira, quando vai a alguma festa, coloca a sua melhor roupa. Pode ser a mais simples – e invariavelmente é –, mas é a melhor. A “roupa de domingo”, como se costuma dizer.
Pois é. O problema é que, do jeito que está a coisa, eu lanço aqui uma proposta: que se deixe de dar a essas festas que pululam por aí, em clubes, associações, galpões de igreja e escolas, e que são estampadas em colunas sociais, o nome de “festa junina”. A não ser por algumas guloseimas (pinhão cozido ou assado, no caso do Paraná, quentão, pipoca, doce de amendoim, pé-de-moleque etc.) e, vá lá, alguma ou outra musiquinha, ou até mesmo alguns simulacros de dança de quadrilha, a vestimenta (o que é mais característico de uma festa junina) está e milhares de quilômetros do que realmente seja um traje caipira para festas. Porque pregar remendos coloridos e esfarrapados em roupas em bom estado de uso é tudo, menos caipira. Colocar na cabeça um chapéu todo cheio de pontas já de fábrica é tudo, menos caipira. Imitar caipira como se fosse um sujeito abobalhado é tudo, menos caipira. Na verdade, toda essa lambança é idiota, imbecil, ridícula, no pior sentido que essas palavras possam ter. Essa “coisa” que tentam impingir como festa junina está em outro registro: o registro do “sem-noção”, do total deslocamento sócio-cultural, da cabal ignorância do que seja cultura. Chamar isso de traje para festa junina é caçoar da alma brasileira. É coisa de gente estulta que não sabe nada de cultura popular e muito menos do que seja o verdadeiro brasileiro, o representante digno do interior legítimo do Brasil.
É preciso parar urgentemente com essa patifaria. Cadê os nossos mitos populares – Mãe d”Água, Negrinho do Pastoreio, Caipora, Saci-Pererê? Cadê as crendices, as formas de falar populares (legítimas, não inventadas)? Cadê a cultura caipira? Por que isso não está regularmente na grade curricular das escolas? Por que grande parte das escolas ainda insiste em imitar a maioria míope e sem-noção e não começa já a repensar o que está sendo ensinado às crianças? Sim, porque uma festa também é uma forma de ensinamento. Por que insistem tanto nesse simulacro de “festa junina”, que mais atrapalha e confunde crianças e adolescentes do que orienta? Quantas crianças sabem quem é Cornélio Pires, Câmara Cascudo, Antonio Cândido, Monteiro Lobato ou João Guimarães Rosa?
Mas, claro, é mais fácil inventar e realizar essas besteiras a que dão o nome de “festa junina” do que pensar e ensinar cultura. Isso deve doer, imagina-se. Ou muda-se radicalmente o registro e o ensinamento dessas “festas”, que não têm nada de junino, de caipira, ou se continua, displicentemente, olhando para cima e assoviando, e seguindo “ensinando” às crianças o estilo country, o Halloween, o Dia de Ação de Graças e o “lado social” da Barbie. Nessa leva, daqui a algum tempo as crianças vão festejar o 04 de julho e achar isso normal. (Cruz credo! Pensando bem, é melhor não dar a ideia. Vai que algum louco, que não concordou com o que está escrito acima, coloque isso em prática). Fidusca!

Em tempo: o primeiro parágrafo acima foi retirado do Dicionário Sertanejo elaborado por Cornélio Pires, um matuto do interior de São Paulo e um dos autores que mais estudou a cultura caipira no país.

* Helcio Kovaleski é caipira.
Lá de Ponta Grossa - PR
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5 Responses
  1. José Jaime Says:

    Excelente. Também já falei isso muitas vezes. Vamos destruindo nossas tradições por não atêrmos as nossas origens e ir aceitando o que vem por aí sem se questionar. Acho que já passou da hora de assumir-mos as nossas tradições, os nossos costumes e sermos um pouco mais patriotas.
    Abraços
    José Jaime.


  2. Anônimo Says:

    Gostei daqui.
    Seguir-te-ei. :)


  3. La Vanu Says:

    José,
    E viva o caipirismo!

    Priscila,
    Seja bem-vinda!


  4. e Says:

    e os sertanejos, entre eles Diadorim e Riobaldo.


  5. La Vanu Says:

    Ótima lembrança Lídia (que bem que escreves tu!)

    E eu que sou apaixonada por Beckett lembraria de Vladimir e Estragon também.