Malone Morre

Se um dia eu voltasse a ser atriz, certamente seria por Beckett.

(...)Meu bem, por que não nos encontramos há setenta anos atrás? Não, foi melhor assim, não vamos ter tempo para nos abominar, para ver nossa juventude indo embora, para lembrar na ressaca o antigo pileque, para procurar em terceiros, cada um por si, o que juntos não conseguimos mais, enfim, nos conhecermos profundamente. Temos que ver as coisas como elas são, não, meu gatinho? Quando você me tem entre seus braços e eu a ti dentro dos meus, não é lá grande coisa, se comparada com os arrebatamentos da juventude e, até, da idade madura. Mas tudo é relativo, não vamos esquecer isso, cabras e bodes têm suas necessidades, nós temos as nossas. Acho espantoso que você consiga, mal posso acreditar, você deve ter levado uma vida tão sóbria e tão casta! Eu também, você deve ter notado. Pense sobretudo que a carne não é tudo, sobretudo em nossa idade, e me aponte os amantes que conseguem dizer com os olhos tudo o que nos dizemos com os nossos, que logo terão visto tudo que lhes resta ver e têm tanta dificuldade em ficarem abertos, e com sua ternura, sem o auxílio da paixão, o que, com esses recursos, realizamos diariamente, quando minhas obrigações nos separam. Pense ainda, já que entre nós não há anda a esconder, que nunca fui bonita nem bem-feita, e sim feia e quase disforme, a julgar pela opinião das pessoas da época. Papai, sobretudo, me dizia que eu era feia como a peste, guardei a expressão. Quanto a você, meu amor, quando tinha idade para fazer bater mais rápido o coração das beldades, você era melhor que eu? Duvido muito. Mas, envelhecendo, eis que nos tornamos apenas mais um pouco horríveis do que nossos contemporâneos mais bem-proporcionados, e você, em particular, ainda tem cabelos. E por nunca termos servido, ainda guardamos alguma coisa de frescor e inocência, me parece. Moral, afinal chegou para nós a estação do amor, vamos aproveitar ao máximo, existem maçãs que só ficam maduras em dezembro. Quanto ao futuro, confie em mim, nós ainda vamos fazer coisas espantosas, você vai ver. Quanto ao fato de dormirmos um com os pés ao lado da cabeça do outro, discordo de você, acho que vale a pena continuar. Siga minhas instruções, você vai longe. Que vergonha, seu velhinho sacana! São esses nossos ossos que estragam tudo, lhe asseguro. Bem, temos que nos aceitar do jeito como somos. Sobretudo, não vamos brigar, tudo isso é brincadeira. Vamos pensar nas horas quando, extintos, ficamos deitamos no escuro, agarrados, nossos corações batendo como um só, e ouvir o vento dizendo o que significa estar lá fora, de noite, no inverno, e o que é ter sido o que fomos, e afundar juntos, numa infelicidade que não tem nome. É assim que temos que ver as coisas. Coragem, coragem, meu velho bebê peludo que eu adoro, e grandes beijos de ostra lá onde você sabe muito bem onde, da tua Bonequinha Chupa-Chupa. P.S. Pedi ostras, tenho esperanças.

Samuel Beckett
(1906-1989)

Samuel Beckett foi um dos fundadores do teatro do absurdo e é considerado um dos principais autores do século 20. Sua obra foi traduzida para mais de trinta idiomas. Samuel Beckett morreu em 1989, cinco meses depois de sua esposa. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse.
Estas são páginas de Malone Morre(1951), traduzido por Paulo Leminski.
7 Responses
  1. Anônimo Says:

    é, La Vanu,
    um mamão lava ostras
    até virarem astros

    karl


  2. La Vanu Says:

    ehehe, ficou bom esse!


  3. La Vanu Says:

    ehehe, ficou bom esse!


  4. Roberto Ney Says:

    que belo texto...
    repleto de sentimentos.
    abraço


  5. San Says:

    Malone morre (e Molloy)foram dos meus livros de cabeceira nos primeiros tempos de faculdade.Engraçado que ontem, à procura de outro livro na estante tropecei no Molloy e fiquei relendo um pouco. Hoje visito o teu varal e cá está o Becket!!!!


  6. La Vanu Says:

    Roberto...viu só?
    Adoro demais...não só estas palavras mas o livro todo é uma surpresa atrás da outra.

    Obrigada pela visita.


  7. La Vanu Says:

    San, sincronicidade ou coincidência?
    Seja o que for, o argumento é o que vale!

    Bj